«Ainda me lembro, como se fosse ontem, da primeira vez que esqueceste o lume do fogão aceso. Na altura, pensámos que seria apenas uma distracção tua. Não me esqueço de quantas outras distracções tiveste a seguir. E de como deixou de ser, apenas, o lume aceso.
Passou a ser a janela por fechar, a roupa meio estendida meio esquecida, a porta de casa aberta, as refeições por tomar. Até que um dia te perdeste. Esqueceste o caminho de regresso para casa. E aí, sim. Já não era uma distracção.
Quando te encontrámos, a tua face era espelho de medo: não sabias, de facto, como voltar. E hoje questiono: naquele momento, percebeste que não era apenas do caminho que te esquecias? Saberias tu, naquele momento, que era de ti própria que te esquecias? Que era para ti que não sabias voltar?
Lembro-me de termos ido ao médico e, após alguns exames e testes, o diagnóstico: doença de Alzheimer. Sei que não sabíamos grande coisa sobre esta doença e, então, começámos a pesquisar e a perguntar. Disseram-nos que, por nos termos apercebido precocemente, a intervenção podia ter um impacto mais eficaz. Esperámos ser verdade. E como mulher de força e garra que és, hoje volvidos mais de 10 anos, ainda te lembras de mim.
Podes não saber qual o dia ou o mês corrente, em que ano estamos, se é segunda ou terça-feira, não sabes as idades nem datas de aniversário, não sabes quando é o Natal nem o Ano Novo, se te digo que são 15 horas, dois minutos a seguir perguntas novamente. Já não tomas banho sozinha, nem sais de casa sem acompanhamento. Já não sabes cozinhar.
Por vezes, és agressiva e estás, muitas vezes, irritada. Já usas fralda durante a noite, pois não te lembras que precisas de ir à casa-de-banho. Apesar de tudo isto, não esqueceste o amor. Não esqueceste quem amas e quem te ama. E por isso considero-me uma sortuda.
Todos nós somos feitos de memórias. Mas não será a memória do amor a que mais custa perder?»